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sábado, 13 de abril de 2013

ARTIGO PUBLICADO

ARTIGO DE ALEXANDRE CAPRIO PUBLICADO NA REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO GEOGRÁFICO E GENEALÓGICO DE SÃO JOSÉ DO RIO PRETO, LANÇADA EM 13 DE ABRIL DE 2013.



DO CASAMENTO, COSTUMES E CRENÇAS DA FAMÍLIA NA CIDADE ANTIGA:
UMA ANÁLISE DA OBRA DE FUSTEL DE COULANGES

Alexandre Paulo Caprio
Psicólogo Cognitivo-comportamental
São José do Rio Preto, 2013
  
                           O casamento é um vínculo estabelecido entre duas pessoas e reconhecido dentro das esferas governamental, religiosa e social. Pressupõe uma relação de intimidade e coabitação e é entendido por muitos como um contrato. A palavra matrimônio, derivada do latim clássico, é constituída das palavras matter matris (mãe), o que limita a união a um homem e uma mulher. No entanto, alguns países e Estados já reconhecem, por força da justiça o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.
                           Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), houve um aumento de 45,6% dos divórcios, ou seja, mais de 351 mil casamentos chegaram ao fim. Esse é o maior número já registrado na história do país. De acordo com juristas, um dos motivos pode ser a flexibilização da legislação. A partir de 2010, os divórcios passaram a poder ser requeridos por vias administrativas em tabelionatos de notas, desde que haja consenso e inexistência de filhos menores ou incapazes.
                           São diversos os motivos que levam as pessoas a se casarem atualmente. Podem procurar adquirir maior visibilidade de sua relação, adquirir estabilidade econômica e social, formar família, legitimar o relacionamento sexual ou obter alguns direitos como a nacionalidade.
                           Os símbolos e ritos presentes na cerimônia de casamento sustentam, atualmente, uma indústria de efeitos visuais que objetivam atender as expectativas dos noivos e das famílias envolvidas. No entanto, o significado de muitos deles, e até da união em si, permanecem desconhecidos por muitos.
                           Como dito anteriormente, há um consenso atual de que o casamento é a união de duas partes – pessoas – afins. O coração, representando o amor, circunda bonequinhos que representam os noivos em cima do bolo, abre e fecha cenas na edição das filmagens e surge em gravuras de alianças. Mas as civilizações antigas não recorriam ao matrimônio tendo como base sentimentos. Os gregos acreditavam que o amor era uma emoção instável demais para sustentar um casamento que devesse se estender por toda a vida.
                           No livro “A Cidade Antiga” de Fustel de Coulanges (1830-1889), há um panorama detalhado dos costumes e ritos de civilizações antigas como a grega e a romana. Em um texto claro, conciso e dividido em cinco partes (livros) são descritas as crenças antigas, formação da família, da cidade, revoluções e o desaparecimento do regime municipal. Para compreender o conceito de casamento retratado por Coulanges, é necessário tratar antes de religião. Toda casa grega ou romana incluía um altar, sobre o qual havia cinzas e um pouco de brasa. Era obrigação do dono da casa manter o fogo, considerado sagrado, sempre aceso, dia e noite. A casa onde o fogo sagrado fosse extinto era condenada. Não podia ser aceso com qualquer material e nem de qualquer forma. Havia um cerimonial para que o fogo sagrado pudesse queimar e ele só deixava de brilhar se todos os membros da família falecessem. Não se tratava, portanto, de um costume insignificante.


O fogo tinha um quê de divino: adorado, recebia um verdadeiro culto. Davam-lhe em oferenda tudo o que julgavam fosse agradável a um deus: flores, frutas, incenso, vinho. Imploravam a sua proteção, acreditavam-no poderoso. Dirigiam-lhe fervorosas preces para dele obter os eternos objetos do desejo humano: saúde, riqueza, felicidade (COULANGES, 1830-1889, p. 46).


                                   Era o fogo sagrado que enriquecia a família. Os gregos o chamavam de deus da riqueza. O chefe da família o invocava em favor dos filhos. No infortúnio, lastimava-se junto ao fogo sagrado e o repreendia. Nos momentos de alegria, rendia-lhe homenagens. O soldado o agradecia por tê-lo salvo do perigo. Não se saía de casa sem dirigir uma prece ao altar onde o fogo crepitava. O homem, ao retornar ao lar, o reverenciava antes mesmo de abraçar mulher e filhos.
                           É desse costume que nasce outro, comumente empregado nos dias atuais: a prece antes das refeições. A refeição era um ato religioso por excelência. É o fogo (o deus) quem presidia. Foi através do elemento fogo que o alimento foi cozido e o pão assado e, por isso, a ele era devida uma prece no início e outra no final das refeições.


Antes de comer, depositavam-se sobre o altar as primícias do alimento; antes de beber, derramava-se a libação do vinho. Era o quinhão do deus. Ninguém duvidava que ele estivesse presente, comesse e bebesse (...).O fogo do lar era uma espécie de ser moral. É verdade que brilha, aquece, cozinha o alimento sagrado; mas ao mesmo tempo possui um raciocínio, uma consciência; concebe deveres e vela para que sejam cumpridos (COULANGES, 1830-1889, p. 48 e 52).
                          

                           A chama acesa no altar tem uma íntima relação com a religião doméstica. Não devemos imaginar as antigas religiões como as que temos atualmente. De muitos séculos para cá, as doutrinas religiosas atendem a duas condições: que seja constituída de um deus único e que se destine a todos, sem rejeição de classe ou raça. Mas as religiões dos primeiros tempos não atendiam qualquer dessas condições. Não preenchiam forma humana e nem se assemelhavam com Zeus ou Brahma. Na religião doméstica, cada deus só poderia ser adorado por uma família. Eram os antepassados daquela família que estavam representados no altar e no fogo da casa. O vínculo entre eles permanecia, assim como o respeito e a aprovação de determinadas decisões. Os mortos cuidavam dos vivos e os vivos cuidavam dos mortos.

Acreditava-se que o morto só aceitaria a oferenda entregue pelos seus. Só queria ser cultuado pelos próprios descendentes. A presença de algum estranho à família perturbava o repouso deles. A lei também proibia que um estranho de aproximasse de um túmulo. Tocar com o pé uma sepultura, mesmo que por descuido, constituía um ato ímpio, pelo qual era preciso acalmar o morto e se purificar (COULANGES 1830-1889, p. 56).


                           Havia uma troca perpétua de favores. O antepassado recebia repastos fúnebres, únicos prazeres de que podia gozar em sua segunda existência. O descendente recebia força e auxílio para prosseguir com sua vida. Esse vínculo poderoso entre as gerações de uma família a tornava um corpo eternamente inseparável.
                           Os jazigos das famílias, atualmente, são remanescentes da antiga religião doméstica. Ainda hoje, todos do mesmo sangue repousam juntos, um após o outro. Em tempos muito remotos, o túmulo ficava na propriedade da família, não muito longe da porta de entrada. Ao entrarem ou saírem de casa, os filhos encontravam seus pais e a eles dirigiam uma invocação. Assim, os antepassados permaneciam entre os seus. Invisíveis, mas sempre presentes. Eram parte da família, imortais, felizes e divinos. Ofereciam apoio nos momentos de fraqueza, consolo nos momentos de derrota e perdão após um erro cometido.
                           A única forma da religião doméstica se propagar era através das gerações. Ao dar a vida, um pai transmitia ao filho sua crença, seu culto e o direito de manter o fogo sagrado. A ele era dada a honra de oferecer repastos fúnebres e pronunciar fórmulas de oração. Desta forma, quando a morte o divinizasse, ele também ocuparia seu lugar entre os deuses da família.
                           A propagação da religião doméstica só acontecia de uma geração para outra através da linhagem masculina. Os antigos acreditavam que apenas o pai possuía o misterioso princípio do ser e transmitia a centelha de vida. As mulheres só participavam desse culto por intermédio do pai ou do marido.

Casamento na Cidade Antiga

                           A primeira instituição que a religião doméstica estabeleceu, foi o casamento. Dentro desse culto, é o homem quem invoca o deus do lar. A mulher participava dos atos religiosos do pai e, depois de casada, os do marido. Desde a infância, a jovem toma parte da religião do pai enfeitando o altar com guirlandas de flores, oferecendo libações diárias, pedindo proteção e agradecendo benefícios. O casamento é o momento de grande mudança na vida de duas famílias, cada qual com o seu culto, mas principalmente na vida da mulher.


Se um rapaz da família vizinha pede-a em casamento, para ela isso significa muito mais do que simplesmente passar de uma casa para outra. Trata-se de abandonar o lar paterno para invocar, daí em diante, o lar do esposo. Trata-se de mudar de religião, praticar outros ritos e pronunciar outras preces. Trata-se de deixar o deus da sua infância para se submeter a um deus desconhecido. E ela não deve esperar manter-se fiel a um honrando outro, pois nessa religião, por um princípio imutável, uma pessoa não pode invocar dois deuses lares nem dois grupos de antepassados. “A partir do casamento”, diz um escritor antigo, “a mulher nada mais tem em comum com a religião doméstica dos pais: faz sacrifícios ao deus lar do marido”. (COULANGES, 1830-1889, p. 65).


                           Por isso, o casamento era algo muito sério para a mulher, mas também para o esposo. O homem trará para dentro de sua casa uma pessoa estranha a seus antepassados e, diante do fogo sagrado, celebrarão juntos as cerimônias misteriosas de seus cultos. A ela serão revelados os ritos e as fórmulas que fundamentam o patrimônio familiar. Era o que havia de mais precioso e sagrado para uma família, estivessem seus membros vivos ou mortos.
                           O casamento era uma cerimônia sagrada que produzia importantes efeitos. A cerimônia não era realizada diante de Zeus e nem de outros deuses do Olimpo. Não devia acontecer em templos. Era realizada em casa, diante da concessão do fogo sagrado, de onde os olhos de todos os antepassados flamejavam atentos. Com o passar dos séculos, a religião dos deuses dos céus adquiriu mais força, levando o casal a cerimônias religiosas em templos. Esse costume tinha o nome de “prelúdios do casamento”. Mas a principal e essencial cerimônia que validava a vida entre um homem e uma mulher só poderia acontecer diante do deus lar doméstico.
                           Entre os gregos, a cerimônia era composta de três atos. O primeiro acontecia na casa do pai da noiva, o segundo era a passagem de um lar para outro e o terceiro e mais importante era realizado no lar do marido.


Na casa paterna, em presença do pretendente, o pai da noiva oferece um sacrifício, em geral rodeado pela família. Terminado esse sacrifício, ele pronuncia uma fórmula sacramental e declara que concede a filha ao rapaz. Essa declaração é indispensável para o casamento, pois a jovem não poderia passar a adorar o deus lar do esposo sem antes o pai a liberar do deus lar paterno. Para entrar na nova religião, precisa estar desligada de qualquer vínculo ou laço para com a sua primitiva religião (COULANGES, 1830-1889, p. 66).


                           O primeiro ato explica a origem de um costume ainda atual: o pretendente ir até a casa da namorada e, depois de uma refeição, pedir a benção do pai em relação à união. Embora não seja um comportamento planejado, ainda resiste ao tempo. Apenas se concedida permissão do pai, a mulher pode ser transferida de uma família para a outra.
                           A condução da jovem até a casa do marido é o segundo ato. Esse momento torna pública a união do casal. O marido pode conduzir ou não o carro onde a noiva deve permanecer com o rosto coberto por um véu e uma coroa na cabeça. As coroas eram usadas em cerimônias de cultos. Já o vestido devia ser branco. O branco era a cor das roupas em todos os atos religiosos.


Precede-a alguém que carrega uma tocha, a tocha nupcial. Em todo o percurso, canta-se em volta da noiva um hino religioso (...) chamado de himeneu, e a importância desse cântico sagrado era tão grande que deu nome a toda a cerimônia (COULANGES, 1930-1889, p. 68).
                          

                           Nesse ato, temos outro costume ainda praticado no atual casamento religioso. A daminha precede a noiva com as alianças, que juntamente com o buquê de flores, representam a antiga tocha nupcial. O pai a conduz de sua antiga casa para as mãos do noivo, que a levará para o novo lar. Esse encontro é reproduzido na igreja com as portas abertas e todos os membros da comunidade presentes, enquanto um hino é entoado. Diferente da cerimônia antiga, que deveria ser realizada diante do altar da casa do marido, o novo casal realiza os mesmos votos diante do altar da igreja, ou seja, diante do deus que reverenciado.
                           Ainda no segundo ato da cerimônia grega, a noiva não deveria entrar na nova residência pelos próprios pés. O noivo a tomava nos braços e a levava para dentro de sua casa, tomando muito cuidado para que os pés da jovem não tocassem a soleira. Esse costume representava o rapto da mulher pelo homem. A noiva deveria lançar alguns gritos e cabia às mulheres que a acompanhavam, fingir defendê-la. Até então, os dois primeiros atos constituem os preparativos e o prelúdio da cerimônia. A partir de então, começa o ato sagrado dentro de casa.


Diante do fogo sagrado, a esposa é colocada em presença da divindade doméstica. É aspergida com água lustral e toca o fogo sagrado. Pronunciam-se preces. Em seguida, os esposos compartilham um bolo, um pão e algumas frutas. Essa espécie de refeição ligeira que começa e acaba por uma libação e uma prece, essa partilha de alimentos diante do fogo sagrado, coloca os dois esposos em comunhão religiosa com os deuses domésticos (COULANGES, 1830-1889, p.69).


                           Portanto, é diante do altar do marido, na presença dos deuses domésticos que o ato sacramental é finalmente consumado. Ele é realizado através das preces, da água lustral e do bolo de farinha de trigo, que foi assado pela chama dos antepassados. Ao ser comido pelo novo casal, a aliança é, enfim, concedida pelo deus doméstico. A prece, água lustral e o bolo ainda estão presentes nas cerimônias atuais com poucas modificações.
                           Para a mulher, o casamento significava um segundo nascimento. Desse dia em diante, era considerada filha do marido, filiae loco. A religião antiga ensinava aos homens que a união conjugal era muito maior do que o relacionamento sexual ou afeição passageira. Era tão solene e produzia efeitos tão sérios que considerava-se a existência de uma única mulher em cada casa. Não se admitia a poligamia. Era indissolúvel e o divórcio quase impossível. O direito romano permitia a dissolução, mas reverter a aliança sacramentada diante do altar doméstico era muito difícil. Apenas uma rara e nova cerimônia sagrada tinha o poder de desligar o que unira. Nesse caso, os dois esposos compareciam uma última vez diante do fogo sagrado comum com a presença de sacerdotes e testemunhas. Como no dia do casamento, um novo bolo de farinha de trigo era preparado e oferecido aos noivos. Mas desta vez, ao invés de compartilharem a refeição, o bolo era rejeitado. Em seguida, ao invés de preces, fórmulas de caráter odiento e assustador eram proferidas. Era uma espécie de maldição, onde a mulher renunciava ao culto e deuses do marido. Após essa cerimônia, considerada antinatural e, provavelmente cheia de estigmas, o casamento estava finalmente dissolvido.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

                           A obra de Coulanges é uma preciosidade desconhecida por muitos. Nela, encontramos não apenas o significado de diversos símbolos atuais, mas a seriedade com que eram tratados. O casamento era muito mais do que a mera união de duas pessoas. Tratava do rompimento de uma mulher com seus antepassados e seu renascimento em outra linhagem. Era assistido e consentido pelo mundo dos vivos e dos mortos. Criava uma aliança inquebrável, que resistia às adversidades que se inclinassem sobre a nova família. Coulanges torna clara a integração e solidez dessa união.
                           Os tempos são outros e os costumes também. Ainda temos os símbolos, mas poucos sabem o que representam. Vestidos e hinos são adornos a serem fotografados para a posteridade. Bolos são só bolos e as velas em seu topo não carregam mais a luz de nossos antepassados. Sua chama sagrada foi apagada, suas lembranças diluídas em nossa rotina frenética. A morte tornou-se dolorosa, um verdadeiro abismo entre nós e nossos protetores. Eles não podem mais cozinhar nossos alimentos, assar nosso pão e assistir nossos passos. Não nos prendemos a crendices e rituais desnecessários. A ciência clarificou nossa visão. Aceleramos nossa comunicação, nosso desenvolvimento, nossos estudos, trabalho e relações. Temos pressa em justificar o sucesso. O consumo é o novo deus. Procuramos nosso preenchimento espiritual através dele, atulhando nosso altar com produtos. Transformamos relacionamentos em prestação de serviços.  Descartamos as pessoas que não atendem nossas expectativas como copos plásticos. Nos conectamos a toda espécie de dispositivos, enquanto nos isolamos de quem é realmente importantes para nós. Simplicidade tornou-se sinônimo de ingenuidade. Estamos nos tornando cada vez mais modernos, rápidos, desapegados, práticos, livres, tristes e sozinhos. Que possamos nos dar conta disso antes da última fagulha de luz se extinguir dentro de nossos corações.


REFERÊNCIAS:

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. tradução: Aurélio Barroso Rebello e Laura Alves. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

O GLOBO, Brasil tem taxa de divórcios recorde em 2011, diz IBGE.
Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/12/brasil-tem-taxa-de-divorcios-recorde-em-2011-diz-ibge.html.

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